Por Marcos Rolim
Por que, durante décadas, os traficantes que operavam naquelas regiões do Rio foram capazes de montar pequenos exércitos?
Vou desafinar o coro dos contentes. Foi importante estabelecer o controle do Estado sobre a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão, áreas antes dominadas por traficantes no Rio de Janeiro? Sim, foi muito importante. Uma democracia não pode conviver com áreas onde os direitos da cidadania não existem e onde grupos armados impõem suas próprias regras pelo terror. Muito bem. Mas por que, durante décadas, os traficantes que operavam naquelas regiões foram capazes de montar pequenos exércitos? Por que as milhares de mortes provocadas pelas disputas entre as facções criminosas no Rio de Janeiro não sensibilizaram os governos para um projeto sério de segurança que protegesse aquelas comunidades?
As respostas são incômodas e convergem, todas, para a associação de parte do Estado com o tráfico de drogas. Quando os brasileiros assistem pela TV a cenas de um conflito com blindados em uma área urbana do Rio, imaginam que há uma guerra entre policiais e traficantes. Aliás, o enfoque oferecido pela mídia, destacadamente pela Globo, não deixa margem para outra interpretação. Sim, todos acreditam que, por entre aqueles barracos, esgueirando-se pelas vielas infectas, estejam os “bandidos” e que, aqui em baixo, vindos direto do asfalto, cavalguem os “mocinhos” que atuam em nome de nossa honra ferida por já tantos crimes sem punição e por tanta injustiça acumulada na soleira da Pátria. A má notícia é que esta polarização não existe.
Os bandidos do tráfico só estiveram lá por tanto tempo porque foram protegidos por seus sócios, os bandidos infiltrados nas polícias. De alguns anos para cá, parte da bandidagem de carteirinha percebeu que poderia romper a sociedade com os traficantes e assumir diretamente não apenas o tráfico, mas também o monopólio da oferta de serviços, desde o transporte por vans clandestinas e a instalação ilegal de pontos de TV a cabo (a já famosa “netcat”) até o fornecimento de gás de cozinha (com ágio de até 30%) e a venda de terrenos públicos.
A força das milícias
Surgiram, então, as milícias – agrupamentos que já controlam mais favelas do que a soma daquelas sob influência do Comando Vermelho (CV), do Terceiro Comando (TC), do Terceiro Comando Puro (TCP) ou da facção Amigos dos Amigos (ADA). As milícias são organizações mafiosas formadas por policiais, bombeiros e agentes penitenciários. Elas possuem um nível de organização muito superior aos traficantes, e seus membros atuam utilizando viaturas, distintivos e armas oficiais. As milícias são o mais sério problema de segurança pública do Rio de Janeiro, e contra elas os governos nada fazem de consistente, porque isso implicaria em reformar as polícias e mexer em um vespeiro. Melhor, então, acalentar o espetáculo.
A “guerra” do Rio começou com uma mentira e corre o risco de terminar em uma ilusão. A mentira: o governo do Rio produziu a versão de que as ações criminosas de queima de ônibus e carros no Rio representavam “uma reação dos traficantes às Unidades de Policia Pacificadora (UPPs)”. O que soaria ridículo, não tivesse a mídia assumido a versão sem perguntas – já a apresentando como expressão de uma realidade factual. Assim, o que era uma crise séria de segurança pública se transformou em uma peça de propaganda. Em breve, saberemos as razões pelas quais uma das facções do tráfico de drogas no Rio resolveu, de uma hora para outra, queimar veículos. Haverá surpresas e ranger de dentes, anotem. Mas até lá, os brasileiros já terão esquecido as manchetes que apresentaram a ocupação de favelas por agentes do Estado como o equivalente ao desembarque dos aliados na Normandia. Também por isso, os contribuintes não saberão que é dentro das polícias fluminenses que se abrigam os mais perigosos “alemães”.
A ilusão da luta do bem contra o mal
A ilusão: a cobertura triunfalista sobre os acontecimentos do Rio está vendendo ao país a ideia de que “as forças do bem” estão vencendo a “guerra contra o tráfico”. Não estão. A política de “war on drugs” foi concebida pelo governo Nixon, nos anos 70. De lá para cá, a nação mais poderosa do mundo investiu trilhões de dólares na repressão ao tráfico e ao consumo de drogas e produziu uma histeria penal responsável por uma população carcerária – a maior do mundo – de 2,5 milhões de pessoas. Depois de 40 anos, o consumo de drogas nos EUA é um dos mais altos do mundo, e o dinheiro necessário para manter todo o aparato de persecução criminal só serviu para disseminar mais sofrimento e produzir a reincidência agravada.
A guerra contra as drogas não pode ser vencida em uma democracia por razões de mercado. Se prendemos todos os traficantes em uma dada cidade, o primeiro resultado é a elevação do preço da droga, o que irá atrair para a região novos “empreendedores” que terão, agora, taxas de lucro maiores. No Brasil, a situação é ainda pior, porque a miséria de milhões de pessoas coloca à disposição deste mercado um “exército infracional de reserva” integrado por milhares de meninos das nossas periferias para quem o tráfico de drogas oferece uma alternativa – curta e ilusória, é claro – de protagonismo e distinção.
Poderemos terminar – talvez no espaço de uma década – com a modalidade do tráfico a partir de grupos armados com domínio territorial. Mas quando isso ocorrer, o tráfico já terá estruturado alternativas mais sofisticadas, ágeis e baratas de abastecimento do mercado, do “delivery” às combinações pelas redes sociais e mensagens via celular. Se quisermos enfrentar o tráfico para valer, será preciso debater a alternativa da legalização das drogas ou de parte delas. Afinal, o tráfico é a resposta do mercado à proibição sempre que há uma demanda de milhões de pessoas. Por isso, os traficantes são contra a legalização, e seus sócios nas polícias também. Elementar, meu caro Watson.
As respostas são incômodas e convergem, todas, para a associação de parte do Estado com o tráfico de drogas. Quando os brasileiros assistem pela TV a cenas de um conflito com blindados em uma área urbana do Rio, imaginam que há uma guerra entre policiais e traficantes. Aliás, o enfoque oferecido pela mídia, destacadamente pela Globo, não deixa margem para outra interpretação. Sim, todos acreditam que, por entre aqueles barracos, esgueirando-se pelas vielas infectas, estejam os “bandidos” e que, aqui em baixo, vindos direto do asfalto, cavalguem os “mocinhos” que atuam em nome de nossa honra ferida por já tantos crimes sem punição e por tanta injustiça acumulada na soleira da Pátria. A má notícia é que esta polarização não existe.
Os bandidos do tráfico só estiveram lá por tanto tempo porque foram protegidos por seus sócios, os bandidos infiltrados nas polícias. De alguns anos para cá, parte da bandidagem de carteirinha percebeu que poderia romper a sociedade com os traficantes e assumir diretamente não apenas o tráfico, mas também o monopólio da oferta de serviços, desde o transporte por vans clandestinas e a instalação ilegal de pontos de TV a cabo (a já famosa “netcat”) até o fornecimento de gás de cozinha (com ágio de até 30%) e a venda de terrenos públicos.
A força das milícias
Surgiram, então, as milícias – agrupamentos que já controlam mais favelas do que a soma daquelas sob influência do Comando Vermelho (CV), do Terceiro Comando (TC), do Terceiro Comando Puro (TCP) ou da facção Amigos dos Amigos (ADA). As milícias são organizações mafiosas formadas por policiais, bombeiros e agentes penitenciários. Elas possuem um nível de organização muito superior aos traficantes, e seus membros atuam utilizando viaturas, distintivos e armas oficiais. As milícias são o mais sério problema de segurança pública do Rio de Janeiro, e contra elas os governos nada fazem de consistente, porque isso implicaria em reformar as polícias e mexer em um vespeiro. Melhor, então, acalentar o espetáculo.
A “guerra” do Rio começou com uma mentira e corre o risco de terminar em uma ilusão. A mentira: o governo do Rio produziu a versão de que as ações criminosas de queima de ônibus e carros no Rio representavam “uma reação dos traficantes às Unidades de Policia Pacificadora (UPPs)”. O que soaria ridículo, não tivesse a mídia assumido a versão sem perguntas – já a apresentando como expressão de uma realidade factual. Assim, o que era uma crise séria de segurança pública se transformou em uma peça de propaganda. Em breve, saberemos as razões pelas quais uma das facções do tráfico de drogas no Rio resolveu, de uma hora para outra, queimar veículos. Haverá surpresas e ranger de dentes, anotem. Mas até lá, os brasileiros já terão esquecido as manchetes que apresentaram a ocupação de favelas por agentes do Estado como o equivalente ao desembarque dos aliados na Normandia. Também por isso, os contribuintes não saberão que é dentro das polícias fluminenses que se abrigam os mais perigosos “alemães”.
A ilusão da luta do bem contra o mal
A ilusão: a cobertura triunfalista sobre os acontecimentos do Rio está vendendo ao país a ideia de que “as forças do bem” estão vencendo a “guerra contra o tráfico”. Não estão. A política de “war on drugs” foi concebida pelo governo Nixon, nos anos 70. De lá para cá, a nação mais poderosa do mundo investiu trilhões de dólares na repressão ao tráfico e ao consumo de drogas e produziu uma histeria penal responsável por uma população carcerária – a maior do mundo – de 2,5 milhões de pessoas. Depois de 40 anos, o consumo de drogas nos EUA é um dos mais altos do mundo, e o dinheiro necessário para manter todo o aparato de persecução criminal só serviu para disseminar mais sofrimento e produzir a reincidência agravada.
A guerra contra as drogas não pode ser vencida em uma democracia por razões de mercado. Se prendemos todos os traficantes em uma dada cidade, o primeiro resultado é a elevação do preço da droga, o que irá atrair para a região novos “empreendedores” que terão, agora, taxas de lucro maiores. No Brasil, a situação é ainda pior, porque a miséria de milhões de pessoas coloca à disposição deste mercado um “exército infracional de reserva” integrado por milhares de meninos das nossas periferias para quem o tráfico de drogas oferece uma alternativa – curta e ilusória, é claro – de protagonismo e distinção.
Poderemos terminar – talvez no espaço de uma década – com a modalidade do tráfico a partir de grupos armados com domínio territorial. Mas quando isso ocorrer, o tráfico já terá estruturado alternativas mais sofisticadas, ágeis e baratas de abastecimento do mercado, do “delivery” às combinações pelas redes sociais e mensagens via celular. Se quisermos enfrentar o tráfico para valer, será preciso debater a alternativa da legalização das drogas ou de parte delas. Afinal, o tráfico é a resposta do mercado à proibição sempre que há uma demanda de milhões de pessoas. Por isso, os traficantes são contra a legalização, e seus sócios nas polícias também. Elementar, meu caro Watson.
MARCOS ROLIM|Jornalista, professor da Cátedra de Direitos Humanos do IPA e consultor em segurança pública
Estraído do site do jornal Diário de Santa Maria
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