O poder dos donos
A demissão do ministro Palocci desvela os prodígios do transformismo dos donos do poder. Entre mortos, afogados e defenestrados, sobrevive impávida a estrutura do poder real, aquele contubérnio entre o dinheiro, a mídia e a política, cujas entranhas, costuradas no golpe de 1964, foram rasgadas no documentário Cidadão Boilensen.
Os poderes dos donos mandam e desmandam, reforçados agora pela presença dos yuppies cosmopolitas da finança globalizada. A grande inovação dos modos contemporâneos, além da internet, do celular e do iPad, é soft power. Nos subterrâneos onde são transacionadas as mercadorias entre o poder político e o poder econômico já não se ouve, felizmente, o grito dos torturados, mas os sussurros das mesas de operação das grandes empresas privadas. (financeiras e não financeiras).
As burocracias do Estado são convidadas a mediar a concorrência entre os grupos e instadas a escolher ad hoc as regras a serem aplicadas. Governo após governo mudam os rumos, mas sobrevivem os métodos. Há que admirar o requinte dos poderosos nos cuidados de patrocinar e preservar o sistema de relações perigosas entre o público e o privado.
A vulnerabilidade do Estado brasileiro não decorre de sua incompetência, como pretende a vulgata liberal, mas de sua importância na “administração” dos mercados. Não só no Brasil, mas em todas as partes são notórias as dificuldades de escapar à força dos interesses particularistas e de fixar políticas em nome do interesse geral. No livro The American Empire and the Political Economy of Global Finance, o cientista político Leo Panich rejeita a dicotomia Estado versus Mercado e aponta “as complexas interrelações entre as carreiras e os interesses públicos e privados como a essência das relações entre o Estado e o Mercado”.
O peso político das classes proprietárias na representação parlamentar e na máquina do Executivo promove sistematicamente a distribuição de favores entre os competidores. As relações viciadas entre Estado e os privados fomentam a busca de vantagens e privilégios. As agências públicas se envolvem no “jogo das regras”, sempre empenhadas em contemplar os velhos interesses e dar guarida aos novos setores que buscam o amparo das políticas “públicas”.
Os estudos internacionais sobre o tema mostram que o Estado transformou-se numa arena em que se digladiam os grandes interesses e corre grana à vontade para financiar candidatos favoráveis à consecução de objetivos dos grandes grupos privados.
Não por acaso os cidadãos de todas as partes estão sempre sobressaltados diante da iminência de serem abalroados por uma sucessão de paradoxos. Nos Estados Unidos, por exemplo, as inovações dos mercados financeiros não teriam avançado sem a prestimosa colaboração dos republicanos Reagan e Bushs I e II, mais o democrata Clinton. Com o auxílio deles, Wall Street voltou a dominar os plenários do Congresso e os escritórios do Executivo.
A independência moral e política se esvai nas eleições, cada vez mais caras. Por isso, ninguém foi capaz, até agora, de propor o óbvio: aprovar uma lei de financiamento público das campanhas eleitorais, condição mínima para que seja instaurado por aqui um regime parecido com a democracia. Há quem torça o nariz para a ideia do financiamento público exclusivo. Os adversários argumentam com a escassez de recursos diante de prioridades mais prioritárias. Escuto meus botões: o que poderia ser mais importante numa sociedade que se pretende democrática e republicana do que a qualidade da representação popular e a igualdade de condições na disputa eleitoral?
Mais do que isso: as normas do mercado passaram a ditar as regras da vida política. No Brasil de hoje, essa lógica fatal vem contaminando as instâncias decisivas do poder estatal. O sistema partidário e o financiamento das campanhas eleitorais parecem ter sido engendrados com o propósito de transformar o Congresso num mercado de balcão, no qual os gritos de “compro” e “vendo” tornam ridícula a hipocrisia dos discursos moralistas dos plenários.
O arbítrio, o favorecimento, o segredo, a obscuridade e o nepotismo eram os demônios que os valores da República restaurada em 1985 pretendiam exorcizar. Pois os curupiras da Pátria Amada estão aí, livres e folgazões, gargalhando sobre as nossas incríveis esperanças.
Ao contrário do que se divulga, os senhores não se tornaram menos ferozes. Aprenderam a usar métodos mais sutis e eficientes para torturar coletivamente os cidadãos com as técnicas da desinformação, do massacre ideológico e da “espetacularização” da política. É uma questão menor saber se a corrupção no governo A é maior do que a no governo B.
Artigo do economista e professor Luiz Gonzaga Belluzzo. Publicado na revista semanal CartaCapital nº 650, nas bancas nesta semana.
A demissão do ministro Palocci desvela os prodígios do transformismo dos donos do poder. Entre mortos, afogados e defenestrados, sobrevive impávida a estrutura do poder real, aquele contubérnio entre o dinheiro, a mídia e a política, cujas entranhas, costuradas no golpe de 1964, foram rasgadas no documentário Cidadão Boilensen.
Os poderes dos donos mandam e desmandam, reforçados agora pela presença dos yuppies cosmopolitas da finança globalizada. A grande inovação dos modos contemporâneos, além da internet, do celular e do iPad, é soft power. Nos subterrâneos onde são transacionadas as mercadorias entre o poder político e o poder econômico já não se ouve, felizmente, o grito dos torturados, mas os sussurros das mesas de operação das grandes empresas privadas. (financeiras e não financeiras).
As burocracias do Estado são convidadas a mediar a concorrência entre os grupos e instadas a escolher ad hoc as regras a serem aplicadas. Governo após governo mudam os rumos, mas sobrevivem os métodos. Há que admirar o requinte dos poderosos nos cuidados de patrocinar e preservar o sistema de relações perigosas entre o público e o privado.
A vulnerabilidade do Estado brasileiro não decorre de sua incompetência, como pretende a vulgata liberal, mas de sua importância na “administração” dos mercados. Não só no Brasil, mas em todas as partes são notórias as dificuldades de escapar à força dos interesses particularistas e de fixar políticas em nome do interesse geral. No livro The American Empire and the Political Economy of Global Finance, o cientista político Leo Panich rejeita a dicotomia Estado versus Mercado e aponta “as complexas interrelações entre as carreiras e os interesses públicos e privados como a essência das relações entre o Estado e o Mercado”.
O peso político das classes proprietárias na representação parlamentar e na máquina do Executivo promove sistematicamente a distribuição de favores entre os competidores. As relações viciadas entre Estado e os privados fomentam a busca de vantagens e privilégios. As agências públicas se envolvem no “jogo das regras”, sempre empenhadas em contemplar os velhos interesses e dar guarida aos novos setores que buscam o amparo das políticas “públicas”.
Os estudos internacionais sobre o tema mostram que o Estado transformou-se numa arena em que se digladiam os grandes interesses e corre grana à vontade para financiar candidatos favoráveis à consecução de objetivos dos grandes grupos privados.
Não por acaso os cidadãos de todas as partes estão sempre sobressaltados diante da iminência de serem abalroados por uma sucessão de paradoxos. Nos Estados Unidos, por exemplo, as inovações dos mercados financeiros não teriam avançado sem a prestimosa colaboração dos republicanos Reagan e Bushs I e II, mais o democrata Clinton. Com o auxílio deles, Wall Street voltou a dominar os plenários do Congresso e os escritórios do Executivo.
A independência moral e política se esvai nas eleições, cada vez mais caras. Por isso, ninguém foi capaz, até agora, de propor o óbvio: aprovar uma lei de financiamento público das campanhas eleitorais, condição mínima para que seja instaurado por aqui um regime parecido com a democracia. Há quem torça o nariz para a ideia do financiamento público exclusivo. Os adversários argumentam com a escassez de recursos diante de prioridades mais prioritárias. Escuto meus botões: o que poderia ser mais importante numa sociedade que se pretende democrática e republicana do que a qualidade da representação popular e a igualdade de condições na disputa eleitoral?
Mais do que isso: as normas do mercado passaram a ditar as regras da vida política. No Brasil de hoje, essa lógica fatal vem contaminando as instâncias decisivas do poder estatal. O sistema partidário e o financiamento das campanhas eleitorais parecem ter sido engendrados com o propósito de transformar o Congresso num mercado de balcão, no qual os gritos de “compro” e “vendo” tornam ridícula a hipocrisia dos discursos moralistas dos plenários.
O arbítrio, o favorecimento, o segredo, a obscuridade e o nepotismo eram os demônios que os valores da República restaurada em 1985 pretendiam exorcizar. Pois os curupiras da Pátria Amada estão aí, livres e folgazões, gargalhando sobre as nossas incríveis esperanças.
Ao contrário do que se divulga, os senhores não se tornaram menos ferozes. Aprenderam a usar métodos mais sutis e eficientes para torturar coletivamente os cidadãos com as técnicas da desinformação, do massacre ideológico e da “espetacularização” da política. É uma questão menor saber se a corrupção no governo A é maior do que a no governo B.
Artigo do economista e professor Luiz Gonzaga Belluzzo. Publicado na revista semanal CartaCapital nº 650, nas bancas nesta semana.
Extraído do Blog Diário Gauche, do Sociólogo Cristóvão Feil.
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