quinta-feira, 4 de junho de 2009

Cigarro & mídia: as relações perigosas

No caso do cigarro as transnacionais do fumo devem largamente à mídia a façanha inacreditável de ocultar a verdade durante décadas – desde os anos 1940, quando já havia nos laboratórios da indústria provas conclusivas sobre os efeitos devastadores de seu produto. Assim, toda a culpa da indústria tem de ser estendida à mídia, sua cúmplice (com as agências de propaganda), por se vender a ela. A mídia não mudou mas hoje é cúmplice envergonhada. A análise é de Argemiro Ferreira.

Desculpem a desagradável imagem acima, alusiva à data de 31 de maio - declarada em 1987, pela Organização Mundial de Saúde, o Dia Mundial Sem Tabaco. A ilustração tem sua razão. Pesquisas mostraram que imagens como essa, já tornadas obrigatórias em alguns países nos próprios maços de cigarro, são eficazes para desencorajar o fumo e pressionar fumantes a abandonar o vício.

Há outras, menos agressivas, mas sem a mesma força dissuasiva. Daí a indústria de cigarro, ao negociar acordos extra-judiciais (já firmados nos EUA com Procuradores Gerais de 46 estados), ter concordado com o pagamento de bilhões de dólares em indenização pelo custo das doenças causadas pelo fumo mas ir a extremos contra imagens nos maços para expor o efeito destruidor de seu produto.

As imagens são a verdade que a indústria obstina-se em esconder. No passado – graças à cumplicidade das agências de propaganda e, em especial, da mídia – elas eram substituídas na tela da TV e nas páginas dos jornais e revistas pelos anúncios mentirosos segundo os quais o cigarro, além de saudável, é a receita do sucesso – e traz iates, mulheres, carros de luxo, etc.

A mídia não mudou mas hoje é cúmplice envergonhada. Nem por isso a do Brasil deu qualquer atenção à data anti-fumo – que nos EUA levou o New York Times a publicar editorial vigoroso contra a ação fraudulenta da indústria, ainda obcecada em contornar proibições legais. A exceção no Brasil foi um texto do Valor Econômico a 29 de abril, traduzido de Business Week. Mostrava como a Philip Morris amplia a venda de cigarros em outros países, para compensar a perda nos EUA.

Quando a saúde está em questão

Muita gente costuma recordar até a data em que decidiu abandonar o cigarro. Para uns, claro, é bem mais difícil do que para outros. Comigo aconteceu há 40 anos, quando era editor internacional da revista Fatos e Fotos, na editora Bloch. Éramos uma equipe pequena na cozinha da redação: Cláudio Mello e Souza (diretor), Leo Schlafman, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Luis Lara Resende.

Na outra sala ficava a reportagem, chefiada por Ney Bianchi. Difícil lembrar todos os nomes, mas Carlos Castilho, Hedyl Valle Júnior, José Paulo Kupfer e Margarida Autran estavam entre eles. Na redação talvez todos fumassem. Parei de fumar depois de reportagem na TV Tupi. Ali um médico pesquisador fora convincente sobre os efeitos do cigarro (podia ser só “recado” da emissora, então em declínio, à indústria, para ter mais anúncios. “Hollywood, o sucesso” era uma das campanhas – na TV, rádio, jornais, outdoors, contra-capas de revistas (como Fatos e Fotos), etc.

Como estudioso da mídia, sempre me indignou suas relações promíscuas com o anunciante. Às vezes, como no episódio da vacina obrigatória no Brasil, a mídia é leviana também por motivação política (de baixo nível), indiferente à saúde das pessoas. Naquela cobertura aliara-se ao obscurantismo, insuflando uma revolta popular, quando devia no mínimo ser informativa, esclarecedora – e responsável.

A Nestlé e a ameaça aos bebês

No caso do cigarro as transnacionais do fumo devem largamente à mídia a façanha inacreditável de ocultar a verdade durante décadas – desde os anos 1940, quando já havia nos laboratórios da indústria provas conclusivas sobre os efeitos devastadores de seu produto. Assim, toda a culpa da indústria tem de ser estendida à mídia, sua cúmplice (com as agências de propaganda), por se vender a ela.

É semelhante, na história recente, o caso da cumplicidade da mídia com a Nestlé e outras corporações do mesmo ramo, empenhadas durante décadas – e para tanto, investindo fortunas incalculáveis – em campanhas enganosas de propaganda para forçar mães no mundo inteiro a trocar a amamentação dos filhos por seus produtos prejudiciais à saúde dos bebês, já que enfraqueciam as defesas deles.

A vitória da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para as Crianças) contra a Nestlé e o lobby mundial do leite em pó também foi dificultada por causa das relações promíscuas da mídia com as corporações afetadas – em troca das verbas da propaganda. Só a duras penas a Nestlé, alvo principal, recuou e admitiu mudar ao menos o caráter de seus anúncios nocivos.

Como as duas organizações do sistema da ONU são de governos (sensíveis a pressão), foi necessário ainda grande esforço de grupos não governamentais, como “Save the Children” e “International Baby Food Action Network”, alertando para o risco da troca da amamentação pela infant formula da Nestlé, que prejudica os bebês, ampliando a mortalidade infantil nos países mais pobres.

Do boicote à liberdade individual

A idéia de um boicote mundial contra produtos da Nestlé foi lançada primeiro em 1974, com um panfleto na Inglaterra (título: “The Baby Killer”, o assassino de bebês). A Nestlé ganhou, após dois anos, um processo de injúria e difamação contra os responsáveis. Mas a vitória moral foi dos réus: tanto pela pena, uma multa irrisória, como pela afirmação do próprio juiz de que a Nestlé devia, sim, mudar sua propaganda.

Depois do processo veio um grande boicote, iniciado em cinco países. Em 1978 o Senado dos EUA abriu investigação e no ano seguinte Unicef e OMS iniciaram o debate de um código com restrições à comercialização e à propaganda do leite em pó. Suspenso em 1988, quando a Nestlé aceitou relutantemente o código, o boicote foi reativado depois, devido a violações da empresa. Até hoje persiste em alguns países.

Tanto em relação à Nestlé como ao cigarro, a cumplicidade da mídia é garantida pelas relações promíscuas da indústria com veículos. Além de embolsar milhões com a propaganda, os veículos ainda suprimem notícias contrárias aos interesses da indústria. E esta, ao se estender a outra área, de alimentos, não deixa de “premiar” com anúncios destes a mídia “compreensiva” com o cigarro, proibido de anunciar.

Provado em definitivo o efeito devastador do cigarro, que leva até à morte, advogados da indústria tiraram outro coelho da cartola. Criaram grupos de defesa da “liberdade individual”: nasceu assim a imagem do fumante como suposto “libertário” em luta contra o Estado opressor, que reprime seu direito de fumar (e morrer) – sem se dar conta, claro, de estar servindo aos que faturam com seu vício, nunca à liberdade.

Texto extraído do blog do Argemiro Ferreira, através da Agência Carta Maior.

Nota do Blogueiro: Certa vez, em um acalorado debate sobre questões relativas a forma como o capitalismo molda o caráter, o pensamento, e a vontade das pessoas, através de sua mais formidável ferramenta, a mídia, defini marketing e propaganda como sinônimos de uma forma de manipulação, pela qua conglomerados transformam futilidades em artigos de "primeira necessidade", substâncias danosas em "guloseimas" e formas mais "gostosas de alimentação". Da mesma forma que dita a forma como as pessoas devem se comportar socialmente, o tipo de "indumentária", acessórios e equipamentos que devem usar para ser socialmente corretos e aceitos, como o ápice do desenvolvimento humano: Consumidores.

Temos a mais diversa gama de exemplos de como essa ferramenta pode tornar o nocivo, saudável, e o saudável, um comportamento não aceitável socialmente (ninguém comenta ao ver pessoas comendo "Cheetos" em plena rua, mas olham de forma irônica se o mesmo indivíduo estiver comendo uma maçã). Não é visto na TV, não faz parte dos comerciais, ninguém mostra as grandes aventuras dos "comedores de maçãs" nos comerciais. Mas quantas vezes vimos belos jovens comendo "Cheetos" rua afora, em situações invejáveis (flertando com uma bela jovem, que permite a aproximação por causa do "Cheetos", sendo aceito por um grupo de pessoas por portar o "alimento do desejo"...).

O apelo é imenso. Basta ver os comerciais de outro produto, tão inocente e benéfico para a saúde como o cigarro, citado no texto acima: O álcool. Basta beber que todo o mundo acaba fodendo. Mulherões, beldades soprando garrafas de cerveja, a turma no bar, a "balada" regada à todos os volumes alcólicos anunciáveis, a música "da hora", cenários paradisíacos. . A conquista, o sexo associado a um produto que sabidamente, causa males à saúde.

Não há uma única imagem desagradável associada à comercialização da bebida alcólica (nunca vi uma imagem de fígado com cirrose, de restos mortais espalhados por rodovias após acidentes causados pelo consumo de álcool, e a prática da direção, nem de vômitos, nem de ébrios deitados à sarjeta, cagados e mijados, sonhando com mais uma "51"). Nada, é tudo livre. Até desenhos animados eram utilizados nos comerciais de cerveja a poucos meses, já preparando o público mais moldável, as crianças, para o consumo.

Propaganda de alimentos é algo simplesmente bestial. Precisamos comer, sentimos fome, não precisamos, em absoluto, que alguém anuncie isso para nós. Deveras evidente, mas porque a indústria alimentícia, em especial a dos "Fast Fods" enfeitam tanto seus anúncios, principalmente com temas infantis (palhaços, animações, brinquedos, brindes "surpresa"). Torna simpático e altamente desejável, um tipo de produto industrial, que pode não ser oferecido pelos pais, ao mesmo tempo em que forma os futuros consumidores desses: as crianças de novo.

Assim temos a mais diversa gama de comidas rápidas, alimentos do tipo, desembala, aquece e come, com pouco ou nenhum valor nutritivo, sempre associado à imagens "felizes". à convincentes imagens felizes>

Mais uma vez ressalto: Não há advertências sobre o consumo e suas possíveis consequências. Em uma embalagem de "Nuggets" de uma empresa ironicamente chamada "Sadia", por exemplo, nunca vi fotos do excesso de gordura extraídos do corpo de uma pessoa com obesidade mórbida, de pessoas sofrendo de hipertensão, de vasos sanguíneos "entupidos", de pessoas sofrendo enfartos, nada. Como se estivéssemos falando de algo totalmente inofensivo.

Propaganda de medicamentos eu considero uma das mais podres. Especialmente com aquela frase cretinado fim delas "A persistirem os sintomas, um médico deverá ser consultado". O que significa isso? "Sentiu-se mal, consuma nossos inofensivos produtos, se não passar ou piorar aí procure um médico". E lá se vão diversos minutos, de provas de amor materno, sob a forma de um "remedinho receita de vovó", que ela soca goela abaixo do filho resfriado, gripado, com alguma infecção, ou gripe do frango, do porco, do rinoceronte, dos bugios... Vai saber o que é? Ams a solução é o "remedinho receita da vovó", fabricado pela Bayer (se é Bayer, é bom, dispensa consultas), Teuto, Roche... E o Governo gastando "baldes" de dinheiro em campanhas contra a auto-medicação.

Para se ter uma exata noção do poder dessas ferramentas, propaganda e marketing, basta parar por uns minutos em um supermercado. Olhar para as prateleiras e se perguntar: Do que está exposto aqui, o que um ser humano precisa para viver? O resto é propaganda.

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