sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Álvaro Uribe - Justiça de bolso num país de bolso

Antonio Morales Riveira

De Bogotá

Se ainda restavam dúvidas a alguém de que o presidente da Colômbia anda transitando pelos caminhos da inconstitucionalidade e acumulando poderes quase ditatoriais, a reforma da Justiça apresentada pelo ministro da pasta deixa as coisas bem claras: todo o poder a Uribe!
É como se vivêssemos uma versão da acumulação dos sovietes, mas agora no seio de uma direita que beira o extremismo e defende a completa desinstitucionalização do país, com um viés autoritário alarmante e em meio a uma completa negação do princípio democrático da autonomia e da separação dos poderes. Tudo isso baseado na aplicação de uma ditadura de maiorias, tendo em visto o fato de que Uribe hoje conta com aprovação popular de 84%, isso também de acordo com os grupos de pesquisa que ele guarda em seu bolso.
Uribe não vê obstáculos em privar de poder os grandes tribunais do país, e em fazer do Judiciário uma dependência da presidência, que ele "clientelizaria" da maneira que lhe seja mais agradável e em benefício dos partidos de sua coalizão. Tudo isso, claro, justificado da maneira mais cínica pelo ministro do Interior e da Justiça, Fabio Valencia, ao afirmar que "o que procuramos é afirmar a independência do Judiciário".
A reforma da Justiça será apresentada ao Congresso cuja maioria apóia Uribe - e que tem 25% de seus membros, todos eles leais a Uribe, presos ou sob investigação por conexão com os paramilitares -, e de acordo com os cálculos do governo deve ser aprovada em julho de 2009.
Já inicialmente, o primeiro ponto a destacar na reforma é que ela favorece aos congressistas leais a Uribe, que aparentemente participaram da orgia sanguinolenta promovida pelas organizações paramilitares (as quais assassinaram um total estimado em 90 mil camponeses). O governo deseja que a Corte Suprema de Justiça, que até hoje vinha mantendo sua independência, deixe de julgar os congressistas acusados de crimes; essa função ficaria reservada a tribunais de alçada menor, manipuláveis, politizados e, acima de tudo, nada neutros ante o avanço da cooptação da Justiça por parte do regime.
A Corte Suprema perderia sua posição como foro natural para o julgamento dos congressistas, porque além disso as funções de magistratura investigativa e as de julgamento seriam separadas. Tudo isso seria perfeito para Uribe e para seus amigos encarcerados ou a encarcerar: a investigação, caso a reforma seja aprovada, seria conduzida pela Corregedoria Geral colombiana, cujo titular, Mario Iguarán, é um dos prepostos de Uribe no Judiciário. Aliás, a reforma prevê que o mandato do corregedor seja ampliado de quatro para oito anos. O julgamento dos casos investigados por esse órgão caberia, em seguida, ao Tribunal Superior de Bogotá. A Corte Suprema teria como missão julgar apenas os recursos.
E, como um julgamento implica, para os congressistas, em perda do mandato, e a decisão sobre conduzir ou não parlamentares a julgamento cabe ao Conselho de Estado, Uribe deseja tranferi-la a outra instância, o Tribunal Superior do departamento de Cundinamarca, cuja competência jurídica é bem inferior à do Conselho do Estado. Mas como na Colômbia houve dezenas de casos de congressistas e políticos encarcerados por crime de paramilitarismo ou outros delitos de corrupção e até homicídios, o que mais temem esses politiqueiros profissionais é não poderem voltar ao Congresso depois de um julgamento, ainda que egressos da prisão. E é essa justamente a maior pena aplicada pela perda do mandato, da maneira em uso atualmente: a "morte política" do congressista deposto. Mas essa é mais uma mudança proposta sob o plano de reforma: de acordo com a proposta, esses cavalheiros teriam o direito de reingressar nos partidos que apóiam Uribe e até mesmo de voltar ao Congresso para votar - favoravelmente, claro - esta e qualquer outra reforma jurídica, política e constitucional que agrade a Álvaro Uribe, que os continuará a ter no bolso.
É com motivo que o senador liberal Juan Fernando Cristo comenta que "não há motivo para que o governo deseja reformar a Justiça quando esta tem funcionado bem". Mas a coisa parece menos absurda se considerarmos que, em benefício dos amigos do governo, a idéia é mesmo a de promover uma reforma para garantir que a Justiça não funcione. Para Gustavo Petro, senador oposicionista do Pólo Democrático Alternativo, a reforma representa "uma retaliação contra a Corte Suprema e uma operação de salvamento a congressistas amigos do governo". Mas seria preciso acrescentar, igualmente, que representa mais um passo no caminho para uma ditadura civil.
Mas a baderna não pára por aí. Outra instância que serviria para controlar as irregularidades no governo, a Procuradoria Geral da Nação, tampouco estaria autorizada a interferir com os congressistas que estão sob julgamento, porque, segundo Valencia, é o Congresso que elege o detentor do cargo, e não seria lícito que ele julgasse a quem o elege. Edgardo Maya, o chefe do ministério público colombiano, vem sendo ao menos medianamente beligerante em seu esforço para promover a justiça e a condenação dos congressistas envolvidos com os paramilitares. Para que não restem pontas soltas, o governo propõe que o procurador, até hoje eleito pelo Congresso com base em uma lista tríplice encaminhada pelos tribunais e o presidente ao Congresso, passe agora a ser escolhido com base em uma lista tríplice que seria preparada apenas - para surpresa de ninguém - pelo presidente.
Sim, vocês estão compreendendo tudo perfeitamente: todo o poder a ele, e à impunidade.
Por outro lado, a única grande corte que poderia interferir com o presidente seria a Constitucional. A reforma propõe que, de agora em diante, esse tribunal seja renovada por cooptação, ou seja, que seus integrantes, indicados por Uribe, fiquem encarregados de eleger seus sucessores, também leais a Uribe. É como que se isso garantisse que não restará nenhuma desordem democrática, nenhuma peça solta. E tudo isso em meio à nova era do "clientelismo judicial".
Não poucos juristas consideram que esse acúmulo de medidas faria com que todas as investigações sobre os elos entre os políticos e os paramilitares desabassem, e que esse horrendo fenômeno, em virtude do qual boa parte da classe política de direita foi e continua sendo cúmplice dos paramilitares, simplesmente se dissolveria em meio à mais completa impunidade judicial.
O corolário é evidente: a reforma judicial precisaria ser acompanhada por uma reforma constitucional que permita a segunda reeleição de Uribe. E para isso os partidos leais a Uribe já estão há algum tempo recolhendo assinaturas com vistas a um referendo. O presidente poderia, então, velar sobre a impunidade até 2014.
Ou por que não até 2018? E, se o desagradável problema da intermediação democrática for solucionado até lá, por que não até o final do reinado? É claro que, em meio a todas essas mudanças, caberia sempre ao presidente Uribe decidir: ditador ou monarca?

Do site Terra Magazine

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